quarta-feira, maio 29, 2002
Saramago - Alguns críticos literários de Israel disseram que eu escrevi "Ensaio sobre a Cegueira" pensando no Holocausto e era voz corrente que um dos meus livros, suponho que o mesmo, havia sido lá escrito... Nada disto era verdade, simplesmente era o lado imaginário de uma relação privilegiada entre leitores e autor que se estabeleceu em Israel e que nunca alimentei de caso pensado. De certa maneira, consideravam-me um deles. Mesmo que para isso tivessem de saltar por cima de alguma interpelação minha, como aquela que sobre o conflito israelo-palestino se pode ler no "Evangelho segundo Jesus Cristo" (pp. 210-211 da edição portuguesa) e cuja parte final aqui deixo: "Agora vais dizer-me, segundo o que te aconselhem as tuas luzes, se, chegando nós um dia a ser poderosos, permitirá o Senhor que oprimamos os estrangeiros que o mesmo Senhor mandou amar, Israel não poderá querer senão o que o Senhor quer, e o Senhor, porque escolheu este povo, quererá tudo quanto for bom para Israel, Mesmo que seja não amar a quem se devia, Sim, se essa for, finalmente, a sua vontade, De Israel ou do Senhor, De ambos, porque são um, Não violarás o direito do estrangeiro, palavra do Senhor, Quando o estrangeiro o tiver e lho reconheçamos, disse o escriba." Nestas últimas palavras ("lho reconheçamos") está o nó da questão: Israel não reconhece o direito dos palestinos a viverem na sua própria terra, mas os judeus que leram aquilo fizeram de conta que não era nada com eles...
Público - Acha que a sua opinião sobre a situação palestiniana vale a perda de milhares de leitores israelitas dos seus livros?
Saramago - Ai de mim se quando vou dizer ou escrever alguma coisa começasse por pensar se com isso irei vender mais ou vender menos livros... Em Março venderam-se em Israel 3000 exemplares de "Todos os Nomes", em Abril, depois das minhas declarações em Ramallah, apenas 280. A conclusão é fácil: 2720 leitores andavam equivocados a meu respeito, 280 sabiam quem eu era. Estes são os que me importam.
Público - Não o impressiona o argumento daqueles que lembraram que os seus leitores se encontram em Israel e não na Palestina?
Saramago - É um argumento estúpido e mesquinho, que denuncia uma mentalidade de avaro. A Israel não falta dinheiro para comprar livros, mas eu não me vendo a quem compre os meus, seja quem for e onde quer que esteja. Em todo o caso, que não se preocupem, estou traduzido ao árabe e alguns dos livros que escrevi circularão certamente na Palestina. É mesmo muito possível que um exemplar desses se encontre soterrado sob os escombros de Jenin...
Público - Já agora, tendo em conta o seu recente artigo "Das pedras de David aos tanques de Golias" (na imprensa internacional e no PÚBLICO de 03-05-02): reconhece que foi excessiva a comparação histórica que fez com a situação que prevalecia em Ramallah durante o cerco israelita?
Saramago - O meu artigo não retira nada às declarações que fiz em Ramallah. É simplesmente outra visão do problema. Se a denominada comunicação social estivesse interessada em divulgar com verdade o que eu disse na Palestina, teria de informar que não comparei os factos de Ramallah aos factos de Auschwitz, mas sim o espírito de Auschwitz ao espírito de Ramallah... Já era então patente a qualquer pessoa a quem a prudência não fizesse fechar os olhos. Não sendo a prudência uma das minhas virtudes, limitei-me a antecipar o que o exército israelita (esse que um grande intelectual judeu, o prof. Leibowitz, no princípio dos anos 90, classificou como judeo-nazi) não fez depois mais que confirmar. E se ainda há por aí quem tenha dúvidas, que consulte o "plano de paz" que Sharon levou a Bush para aprovação. Nele se contempla o reconhecimento de um Estado palestino sem capacidade militar e com o território reduzido, em que se criarão zonas de segurança para separar fisicamente israelitas e palestinos. O "plano" prevê um acantonamento permanente de tropas nos territórios palestinos, grades, vedações electrificadas e portas de acesso, como as que actualmente separam Gaza de Israel. Não é preciso ser um lince de inteligência para perceber que a aplicação de um tal "plano de paz" transformará definitivamente o chamado território palestino num enorme campo de concentração...
excerto de entrevista a José Saramago, Jornal Público 29/05/02
salamandrine 10:30
|